Valmir Nunes: corredor sem limites

Redação Webrun | Ultra Maratona · 04 set, 2003

Valmir Nunes (com a bandeira) é o único brasileiro campeão mundial dos 100K. Tem dois títulos mundiais (1991 e 1995) (foto: Divulgação)
Valmir Nunes (com a bandeira) é o único brasileiro campeão mundial dos 100K. Tem dois títulos mundiais (1991 e 1995) (foto: Divulgação)

O ultramaratonista Valmir Nunes é bicampeão mundial de 100km e planeja continuar correndo, correndo, correndo…

Imagine correr distâncias superiores a duas, quatro ou cinco maratonas e cruzar a linha de chegada feliz da vida. Suicídio? Loucura? Não. Trata-se do mais puro sentido de superação. Amor incondicional ao esporte sem fronteiras. Assim são os ultramaratonistas. Assim é Valmir Nunes, o brasileiro dono de dois títulos mundiais nos 100km e dono da terceira melhor marca de desafios 24h (273km823m) do planeta. Natural de Santos, o atleta é um lutador. Ultrapassa cada quilômetro com a mesma garra com que derrotou uma doença que poderia ter sido fatal no final da adolescência.

A determinação do atleta da Mizuno/Memorial é tanta, que até parece fácil atravessar uma centena de quilômetros, no mínimo, lutar contra adversidades naturais ou adversários incansáveis. Preocupação? Sim, com um rival interno. “Nunca penso no adversário. A única pessoa de que tenho medo é de mim mesmo”. Para quem acredita que correr compulsivamente necessita um dom especial, a resposta de Valmir é simples e direta. “Quem nasce com o dom é o velocista. Fundista tem que treinar muito, sofrer bastante.”

E foi ‘sofrendo bastante’ que Valmir chegou longe. A vocação por conquistas, que hoje o fazem um dos maiores nomes da categoria no mundo, começou lutando pela vida. Aos 18 anos, logo após começar a se dedicar ao atletismo, surgiram sintomas de uma grave doença. Perdia peso e muito sangue. As dores constantes resultaram em meses de internação. Vários médicos o examinaram e as previsões não eram animadoras. O problema no aparelho digestivo, chamado reto colite ulcerativa, só teria solução se parte do intestino fosse removido. Seria o fim do sonho de ser corredor. Quando tudo parecia perdido, um médico de Santos trouxe a boa notícia. Um novo medicamento poderia recuperá-lo. Com o tratamento, Valmir começou a apresentar melhoras e aos poucos foi retomando a vida normal.

Aos 22 anos, era um feliz corredor de provas de rua (10km, 15km, meia-maratona e maratonas), quando percebeu que poderia encarar desafios maiores. Como sentia-se bem correndo por horas e horas, resolveu disputar uma competição de 100Km. Curioso é que quando começou a participar desse tipo de desafio, ainda tinha algumas recaídas da doença, que desapareceram com o tempo. ”Troquei as dores da doença pelas dores e cansaço dessas provas”, brinca.

Na primeira prova de 100km, disputada em Uberaba (MG), em 1990, Valmir teria a chance de ganhar uma passagem para competir na Espanha. Determinação e garra fizeram valer o esforço. Venceu e ganhou o direito de correr em terras espanholas. O problema é que a passagem, prometida pelos organizadores, não veio. Obstinado, foi atrás de ajuda e conseguiu viajar para conquistar o terceiro lugar nos 100km de Santander. Foi um começo mais que promissor na ultramaratona.

A partir deste ponto, várias foram as conquistas deste santista. Além de ser bicampeão mundial, é recordista brasileiro, sul-americano, e das américas na distância de 100km. Valmir também detém a melhor marca mundial nessa distância (6h18min09), obtida no campeonato mundial na Holanda, em 1995.

O segredo para manter a disposição após anos correndo milhares de quilômetros? “Amor ao esporte, sempre”, lembra. Além da conquista pessoal, o atleta pode, enfim, viver do que mais gosta. “Tenho uma casa e a possibilidade de pagar os estudos da minha esposa e do meu filho”. Mas Valmir garante que nunca pensou no lado financeiro. “No atletismo não tem dinheiro que pague a superação, os recordes, os números, as vitórias.”

Desafio realmente parece ser a palavra-chave nas conquistas de Valmir. No primeiro título mundial, em 1991, na Itália, passou por momentos angustiantes. Viajou com apenas US$ 40 no bolso e ainda se perdeu. A prova seria disputa em Faenza, no sábado, mas ele desembarcou em Florença, em uma quinta-feira à noite. Ao bater na porta do hotel, já fechado, e procurar pelos atletas, notou o erro. Desesperado, ligou para um amigo na Espanha, que confirmou o equivoco. Como era madrugada, e não teria como seguir viagem, dormiu na rua, próximo ao hotel. Na manhã seguinte, pegou um trem até Faenza.

A essa altura, seus dólares tinham ido ‘pro espaço’. Fome e preocupação latejavam sua cabeça e estômago, mas a solidariedade fez a diferença. Alguns atletas espanhóis providenciaram um jantar ao brasileiro com spaguetti à bolonhesa. Após tanto sofrimento e noites de sono interrompido, natural seria que o desempenho fosse um completo desastre. Surpreendendo a todos, Valmir conseguiu reunir forças para se concentrar no maior objetivo: o título mundial. Correndo seguro, alcançou o líder da prova no quilômetro 70 e terminou com três minutos de vantagem para o segundo colocado.

Após tanta dificuldade, entende-se porque esse título é uma das maiores emoções do ultramaratonista. Não só pela conquista inédita, mas pela superação física e mental. Uma receita de campeão, que garante que toda pessoa que pensa em praticar atletismo deve se dedicar muito ao que faz. “É um caminho muito árduo, mas vale a pena.”

Engana-se quem pensa que Valmir já alcançou todas as metas. O recorde mundial nas 24h é seu grande objetivo. Garantias que vai buscar mais esse recorde são muitas. Exigente consigo mesmo, é do tipo que não desiste nunca, ou quase. “Se eu for ouvir meu cérebro, paro em todas as provas. Só paro na hora que minha perna não conseguir mais correr. Andar não é o meu negócio.”

Rotina – ‘Louco’ pelo que faz, Valmir, que treina sozinho desde 1990, corre sete dias por semana, pegando uma ‘folguinha’ somente no domingo à tarde. Na rotina de treinos, em dois ou até três períodos no dia, percorre trechos de 20 a 30 km. Distâncias que sobem gradativamente quando está perto de competições. E tudo isso pelo simples prazer de se desafiar.
Sempre lembrando a paixão que tem pelo atletismo, Valmir é incansável na busca de ideais e seus limites. “Gosto de correr em terrenos difíceis. Corro muito na terra, na areia fofa. Aliás, gosto muito de correr na areia fofa.”

Aos 38 anos, lembra do tempo em que tinha apenas um par de tênis para treinar e competir. “Usava o calçado até não dar mais. Isso é complicado, pois aumenta o risco de lesões”. Hoje, experiente e com possibilidades de fazer um treino adequado, utiliza três pares de tênis por mês. Além disso, o bicampeão mundial dos 100km lembra que já não é tão ‘novinho’ assim. “Eu, que já passei dos 30, procuro evitar ao máximo o impacto. Se você usa muito o tênis, ele vai perdendo o amortecedor e, com isso, aumenta o risco de lesões”, explica.

Procurando orientar os mais jovens, o atleta dá uma dica: “O caminho é longo. Tem que treinar muito. Ter objetivos e procurar alcançá-los. Quem quer viver do esporte, tem que se superar.” Um bom caminho para vencer no esporte é ter uma referência, um ídolo. Valmir procurou se espelhar nas passadas seguras de José João da Silva.

Projetos – Valmir Nunes espera poder desenvolver um trabalho com jovens na cidade de Santos. Além de promover melhor qualidade de vida, pretende trabalhar “duro” com o atletismo, procurando, assim, incentivar a prática do esporte. “Temos bons jogadores de futebol porque temos muitos praticantes. Não temos tantos corredores, porque são poucos os que praticam. No exterior existem muitas escolinhas de atletismo e aqui de futebol”, analisa o atleta.
A falta de memória e exposição dos atletas contribui para que o atletismo não seja tão praticado no País. Segundo Valmir, os corredores do passado têm muito o que passar aos mais jovens, só que eles sumiram. “Falta memória, mais exposição. Poucos que são reconhecidos. Se um atleta se destaca, é bom para todos.” Mesmo assim, Valmir está otimista quanto ao futuro do atletismo nacional. “O Brasil tem tudo de bom. As coisas estão mudando.”

Reprodução autorizada da edição #7 da Revista SuperAção – Setembro 2003.

Este texto foi escrito por: Fernando Evans – Revista SuperAção

 

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