Você já correu uma ultramaratona?
Já ingeriu algum remédio enquanto corria?
Conhece alguém que já fez isso?
Pois é, se você respondeu sim para a primeira pergunta, provavelmente as outras também receberam a mesma resposta.
E, se você abrir a mochila de um ultramaratonista, dentro do kit de primeiros socorros (parto do princípio que este é um item tão fundamental quanto o calçado) terão alguns comprimidos, mas para que? Por quê? E o mais importante… De quê?
Normalmente, são comprimidos para mascarar ou inibir a dor, mas espere aí, se você vai correr mais de 42k, não parece óbvio que isso vai acontecer?
Foto: Andrezj Torkarski/Fotolia
Conviver com as dores em uma corrida de longa distância é extremamente normal, afinal este esporte exige da musculatura, cabeça e de todos os sistemas do corpo.
Porém, é muito comum que com esses comprimidos seja possível tolerar mais facilmente a dor ou até eliminá-la, tendo mais chances de obter uma melhor performance.
Como 99,9% das corridas no Brasil não tem controle antidoping, estes (e outros muito piores) recursos são utilizados de forma banal e ninguém tem vergonha nem receio de admitir.
Em provas trail, quanto maior a distância mais forte serão os artifícios pensados para minimizar possíveis dores. Na verdade, muita gente já toma algo antes da largada, afim de tentar não sentir nenhuma dor.
Como esse assunto é abertamente tratado em qualquer grupo do “whats” de trail, surgiu a dúvida de um amigo sobre a utilização de ibuprofeno…
Foi dessa situação que surgiu a ideia do texto.
O ibuprofeno é classificado como AINE (anti-inflamatório não-esteroide), este remédio tem ação anti-inflamatória, analgésica e antitérmica, que permite a redução da febre, diminuição da inflamação e o alívio da dor.
Resolvi estudar e buscar um pouco mais sobre o remédio, comum no Brasil e, vendido em qualquer farmácia sem a necessidade de receita alguma.
Foto: Jeremy/Fotolia
Durante a discussão do grupo falei da minha experiência pessoal. Ao fazer a primeira ultramaratona, alguns atletas mais experientes falaram que era bom tomar um comprimido durante a prova: “que mal faria um remédio que qualquer um pode comprar na farmácia?” pensei. Tomei. A única coisa que senti foi enjoo. Enfim, completei a prova, cheio de felicidade da primeira Ultra. Alguns dias mais tarde, durante uma aula de fisiologia do exercício na faculdade, questionei o professor sobre a utilização deste artifício, ele quase me “excomungou”…
Depois desse dia, nunca mais tomei comprimidos durante provas.
Com minha experiência pessoal, vamos tentar entender o que os estudos da área do exercício dizem a respeito.
Fiz uma busca tentando encontrar a resposta para minha principal pergunta: “tomar ibuprofeno melhora a performance?”
O primeiro lugar de procura foi na lista de doping e para minha surpresa, não estava lá. Só por esse motivo, já sei que o medicamento não melhora a performance, pois se tivesse alguma alteração estaria nesta listagem.
Mesmo assim, continuei e consegui achar alguns estudos interessantes!
Corroborando com a minha fala inicial neste texto, um estudo demonstrou que, dos atletas que participaram do Ironman Florianópolis em 2008, praticamente metade (47%) utilizou ibuprofeno durante a prova e, quando perguntados do motivo que os levou a usar, 35% declarou que o objetivo era prevenir ou reduzir a dor gerada pela prova (Gorski, 2009).
Na teoria, isso até pode ter uma lógica bacana, pois todo exercício físico desencadeia pequenos (ou grandes, depende da intensidade ou volume) processos inflamatórios. Nesta linha de raciocínio, utilizar um ANTI-inflamatório ajudaria a não ter dor ou uma “inflamação” tão grande.
Entretanto, analisando um pouco mais o medicamento, vi que ele demora, em média, duas horas para ser absorvido e gerar “efeito” (isso sem a pessoa praticar alguma atividade).
Foto: Augusta16/Fotolia
Observando os possíveis efeitos colaterais deste medicamento percebemos reações gastrointestinais, eventos cardiovasculares trombóticos, vasculite alérgica seguida de falência múltipla dos órgãos, inibição da excreção renal de água e sódio, hipercalcemia, redução do anabolismo tecidual e estresse oxidativo após esforços de longa duração (Da silva, 2009).
Se você ler bem cada reação adversa, vai contra qualquer melhora de performance sonhada em provas de longa duração. Pelo contrário, são reações que você NÃO quer ter durante a prova.
Sendo sincero, não encontrei em estudos melhora alguma de performance utilizando o medicamento. Por outro lado, encontrei um grande motivo para NÃO USAR: um estudo realizado após a mítica Western States Endurance Run com seus 160k de extensão, mostrou que os atletas que utilizaram ibuprofeno durante a prova obtiveram marcadores de estresse oxidativo mais altos do que aqueles que utilizaram placebo. Não houve nenhum tipo de resultado que demonstrasse melhora de performance (MCANULTY, 2007).
Outro estudo bacana foi realizado em uma prova de etapas, a famosa “4 deserts”. Os cientistas deram aos atletas ibuprofeno ou placebo na perna de 80k (dos 250k totais). O resultado demonstrou uma taxa de 18% a mais de lesão renal em quem utilizou o medicamento. Isso ocorre porque o Ibuprofeno tem como uma de suas ações diminuir o fluxo sanguíneo e, quando corremos uma prova longa, perdemos muito líquido através do suor, desidratando. A ação do ibuprofeno se soma a desidratação e o funcionamento do rim é aumentado, acontece que muitas vezes ele não dá conta de todo o trabalho, entrando assim em colapso (Lipman, 2017).
Acho que os estudos são bem claros quanto aos resultados da utilização do medicamento. Fica evidente que o CUSTO x BENEFÍCIO deste artificio é baixíssimo. Infelizmente, a dor vai ser sua companheira nas corridas trail e certamente o que mais vai surtir efeito é você treinar mais e se preparar para atingir seus objetivos. Espero ter contribuído para que você corra com mais saúde e não tenha nenhuma surpresa renal desagradável.
Foto: PooMtyKunG/Fotolia
Já utilizou este medicamento em prova? Notou diferença?
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Referências
MCANULTY, Steven R. et al. Ibuprofen use during extreme exercise: effects on oxidative stress and PGE2. Medicine and science in sports and exercise, v. 39, n. 7, p. 1075-1079, 2007.
GORSKI, Tatiane et al. Use of nonsteroidal anti-inflammatory drugs (NSAIDs) in triathletes: Prevalence, level of awareness, and reasons for use. British journal of sports medicine, 2009.
SILVA, Eduardo Ramos da. Análise da potencialidade ergogênica e riscos associados ao uso do antiinflamatório não-esteroidal ibuprofeno em corredores de endurance. 2009.
LIPMAN, Grant S. et al. Ibuprofen versus placebo effect on acute kidney injury in ultramarathons: a randomised controlled trial. Emerg Med J, p. emermed-2016-206353, 2017.