Corridas de Rua · 04 jan, 2007
Ana Luiza dos Anjos Garcez, a corredora conhecida como Animal, já foi moradora de rua, usava drogas, mas através do esporte deu a volta por cima e se tornou uma atleta de ponta. Ex-moradora dos bancos do centro velho de São Paulo, ela está prestes a realizar um sonho: conhecer os parques de Walt Disney World, onde participará da Meia Maratona no dia seis.
São Paulo - Ana Luiza passou um bom tempo da vida na Febem, pois sua mãe não tinha para onde levá-la e a abandonou na instituição. A mulher que me teve me levou para lá e depois que completei 18 anos me arrumaram um emprego de doméstica e me tiraram de lá.
Porém, o que poderia ser o início de uma nova vida para Ana, foi o começo de um pesadelo. Trabalhei cinco meses na casa da mulher e ela não me pagou, conta. Tomada pela raiva de não receber o que lhe era devido, ela resolveu dar uma lição na patroa e roubou todos os pertences de valor da casa.
Ela então usou o poder de persuasão obtido nos anos que passou na Febem e pediu ajuda para um soldado do corpo de bombeiros, para embarcar em um ônibus de linha, coma as malas onde estavam os frutos do roubo. Ela seguiu rumo à Praça da República e distribuiu os objetos para os moradores de rua.
Vivência nas ruas - Com o tempo ela ganhou a confiança de todos na região e cheirou cola pela primeira vez: Eu não gostei no começo, mas depois comecei a achar legal, mexia com a cabeça e dava barato. Com o passar do tempo a cola não fazia mais efeito e ela partiu para outras drogas, como a cocaína e remédios para ficar acordada a noite inteira. Se eu dormisse, tinha medo de alguém fazer algo errado comigo, como me estuprar, lembra.
Ela começou então a roubar as pessoas para ter dinheiro para a comida e para as drogas; chegava por trás das vítimas e as ameaçava de morte caso não passassem a carteira e outros objetos de valor. Em um dos acessos de loucura provocado pela droga, ela subiu em um viaduto e quase se jogou. Eu estava tão louca que achava que podia voar, ouvia o E.T. me chamar. Aí, tinha uma bicha que morava comigo, que me puxou e me jogou no chão.
Conhecida como Tia Punk, ela chegou a ser ameaçada de morte por um grupo de trombadinhas, mas teve pulso forte e encarou os marmanjos. Vai me matar por que? Se quiser matar, mate agora, atira na minha cabeça. Porém, ela foi logo defendida pelo grupo que ela liderava e não houve conseqüências sérias.
Antes de sonhar em participar de corridas, Animal já caminhava grandes distâncias, sempre com o intuito de assaltar as pessoas. Fazia o trajeto entre São Paulo e Santos, vestida de prostituta para roubar e na volta dava uns trocados para os caminhoneiros em troca de carona.
Um dos locais de moradia de Ana era a laje do Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro. Dormia com um cachorro lá, sentia o cheiro de churrasco e sonhava em um dia comer o que quisesse. Eu chegava nas padarias e restaurantes, me xingavam de vagabunda e me ameaçavam.
Nas festas de natal e ano novo Ana juntava alguns pertences e comidas que pedia nas casas e fazia uma festa. Eu ensinava para os garotos falarem direitinho, sem malandragem e pedir alguma prenda.
Incentivo - O despertar para o esporte veio através do filme Carruagens de Fogo. Estava na Rua Sete de Abril, vi o filme em uma loja, ouvi a música e falei que não queria mais ser moradora de rua. Ela então imaginou que poderia correr, já que sempre fugia da polícia, mas foi desencorajada por seus colegas. Para provar que estava certa, mandou que eles roubassem tênis, roupa de corrida, o dinheiro para a inscrição e se aventurou na Maratona de São Paulo.
Corri 42,195 metros em mais de seis horas. De repente vi o caminhão recolhendo os retardatários, mas não quis subir. Ela relutou até o final e conseguiu completar a prova. Em seguida, roubou uma medalha e colocou no pescoço do trombadinha que duvidou que ela conseguiria finalizar. No dia seguinte ela sentiu as dores e o cansaço e jurou que nunca mais iria correr.
Porém, não teve jeito, ela foi picada pelo famoso bichinho da corrida e se empolgou, quando sabia que haveria uma corrida, logo se animava em participar. Um dia eu coloquei na cabeça que ia sair da rua, conta. Em uma de suas andanças pela cidade, ela estava no Parque do Ibirapuera, onde acontecia um check-up médico gratuito. Pedi para fazer exame, porque podia estar com Aids, conta.
Com a má educação e a agressividade que lhe era peculiar na época, ela relutou, mas deixou ser levada para um hospital e se submeter à baterias de exames. Viram que meu VO2 era muito bom, comemora. Uma emissora de televisão se interessou pela história de Ana e resolveu fazer uma matéria.
Sensibilizado com a história, o então Secretário Estadual de Esportes de São Paulo, Fausto Camunha, resolveu ajudá-la e a levou para morar no Centro Olímpico. Tudo eu tinha medo e vergonha, as pessoas olhavam para mim e eu queria sair na mão, lembra.
Por volta dos 24 anos, após vencer uma prova em sua categoria, na cidade de Bauru, ela se animou e começou a pegar firme nos treinamentos. Nessa época ela ainda usava drogas, mas sempre de forma escondida, para que ninguém descobrisse.
Fim das drogas - Por ironia do destino, os efeitos benéficos da corrida começaram a se confrontar com a abstinência da droga e Ana ficou com um lado do corpo paralisado por uma semana. Deixei na mão de Deus me curar ou me fazer pagar os pecados. Depois que melhorei nunca mais quis usar drogas, comenta.
Tendo em vista o potencial para atleta da ex-moradora de rua, Fausto pediu para que o treinador Wanderlei de Oliveira, um dos poucos especialistas em corridas na época, treinasse Ana. Diante da recusa do treinador por ela ser muito indisciplinada, ele pediu que o então Governador de São Paulo, Mário Covas, fizesse o pedido.
Ela começou a ficar conhecida entre os corredores e os políticos e disse para o Fausto que queria treinar comigo. Certa vez me ligou no celular uma pessoa que se intitulou Mário Covas e pediu que a treinasse. Achei estranho, imaginei que fosse trote e desliguei, comenta Wanderley de Oliveira.
Após um tempo ligou uma mulher e disse será que você poderia ser um pouco mais educado e atender o Mário Covas? Aí ela me disse que era realmente o Covas e eles queriam ajudar a Ana, lembra o treinador.
Hoje, já domada e disciplinada, Animal conta como é o ritmo de treinos: acordo às 5h, tomo água, como uma banana, corro na pista, faço treinos de coordenação e postura, alongo e faço alguns tiros. Depois eu descanso; rodo cerca de 10 quilômetros no parque Ibirapuera e depois faço musculação. À tarde volto para o parque e treino mais.
Para participar da prova na Disney, Ana fez um penteado especial. No início pensou em deixar os cabelos no formato das orelhas da Minnie, mas mudou de idéia e colocou umas tranças com as cores da bandeira brasileira. Vou com o Brasil na cabeça e no coração, avisa.
Apesar da ansiedade em conhecer a terra encantada, ela diz que está bem focada na prova e só depois vai pensar no passeio. Depois que eu correr vou pensar nas compras, adoro tênis e agasalho; quero comprar também um i-pod e tudo o que eu não tive direito. Ela também conta que ao chegar na terra encantada vai se beliscar para ter certeza de que não é um sonho.
Sonhos e lembranças - O gosto pela corrida é tão forte em Ana Luiza, que ela gostaria de dar aulas para crianças sobre como correr e voltar a dar palestras sobre drogas. Gosto de falar com as mães, para não deixar os filhos no semáforo pedindo dinheiro. Quanto mais você dá esmola para criança na rua, menos vontade ela vai ter de sair dessa vida, alerta.
Hoje em dia ela passa pelas ruas onde morou e sempre encontra velhos amigos, que admiram o fato de ela ter dado a volta por cima. Eles falam que eu sou guerreira, corajosa. Até hoje eu não vi ninguém que tenha se espelhado em mim, mas eu ficaria muito orgulhosa se visse, comenta.
Eu não me arrependo de usar drogas, fui criada sem carinho, via as crianças receberem visitas dos pais nos domingos e eu não tinha nada. E não é fácil sair dessa vida, a rua é só ilusão, alerta. Perdi muitos amigos na rua, alguns inclusive afogados na Represa Guarapiranga. Eles gritavam tia punk, socorro, mas eu não podia fazer nada, pois se entrasse na água iria me afogar também. Eu tenho saudades dos meus amigos, mas não da rua, completa.
Com uma imagem de forte e aguerrida, Ana Luiza sempre lembra a sua história com orgulho, mas no final da entrevista, ao ser perguntada sobre os planos e sonhos para o ano que se inicia, os olhos se enchem de lágrimas. Emocionada, ela fala sobre os desejos: meu sonho é arrumar emprego e morar numa casa. Também queria uma geladeira, pois não posso guardar nada para comer, que estrague fácil, como um leite ou iogurte.
Animal lembra com carinho todos os que a auxiliaram e manda um agradecimento. Quero agradecer a Run for Life, o meu padrinho Fernando Crespo, que sempre me ajuda; o Fausto Camunha, que mora no meu coração e o pessoal da Corpore. Também o pessoal do SET, do Hospital São Paulo; o Wanderlei; o Fernando; a Conceição minha cabeleireira, o pessoal da Federação Paulista de Atletismo e todos que me ajudaram.
Wanderley de Oliveira, após se dar conta que as ligações que recebia em seu celular com pedidos para treinar Animal, eram realmente de Mário Covas, aceitou treinar a atleta. Ele conta como foi o duro processo de treinamento e reeducação.
Ela me via nas corridas e colocou na cabeça que queria treinar comigo, mas sempre que eu a via nas provas ela estava brigando. Hoje ela é brincalhona, tira sarro, mas antes era bem diferente. Ela só queria saber de brigar e responder mal para as pessoas, lembra Wanderley.
Ele conta que levou Animal para a pista, com o intuito de fazer o treinamento inicial, um pouco a contra gosto. Relutei no começo, pois os meus clientes eram pessoas elitizadas e achei que ela fosse criar problema. Marquei um dia que não tivesse ninguém. Ela chegou com uma barriga enorme, cheia de vermes.
Começo dos treinos - Levada para um fisiologista, ela ficou cerca de um mês tomando vermífugo, começou a morar no Constâncio Vaz e passou a receber ajuda do Pão de Açúcar. Eles forneceram tratamento dentário, uma assistente social, aulas de boas maneiras e mandaram uma pessoa para acompanhá-la e dar cuidados especiais, a Mônica Peralta, comenta o treinador.
Em 1999 ela ganhou um presente do Fausto e foi correr a Maratona de Nova York. Porém, ela não tinha inscrição e correu com o nome da jornalista Fernanda Paradizo. Na ocasião ela ficou com o grupo Pão de Açúcar no hotel e se mostrou uma pessoa simpática, forte, vencedora e começou a ser aceita por todos.
Hoje ela não sabe para onde vai, passa o natal na casa de um, ano novo na casa de outro, cada hora está num lugar. As pessoas a têm como uma amiga, diz Oliveira. Todas as viagens que ela faz são as pessoas que ajudam, fazem uma vaquinha, completa.
Consagração - Segundo o orgulhoso treinador, ela se tornou uma atleta de nível bom, sempre chega entre as primeiras. Ela foi campeã com 43 anos da meia do Chile, em 2006 e praticamente todas as corridas que participou de 10.000m fez entre 38min30 e 39min15, o que é muito bom.
A expectativa é que ela faça entre 1h25 e 1h24. A gente nunca sabe o nível técnico da prova, mas é provável que ela chegue entre as cinco melhores. A campeã do ano passado fez 1h18, mas Animal não tem como fazer esse tempo, o melhor dela foi 1h22 em Buenos Aires. Eu disse para ela ser cautelosa nessa prova e não ter grandes expectativas finaliza.
Um exemplo da evolução da corredora pôde ser comprovado no final do ano passado, ocasião em que ela finalizou o Circuito Corpore na primeira posição na categoria 40-44 anos. Durante a premiação, na prova de natal da entidade, Animal disse que trabalhou duro para conquistar esse resultado positivo.
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