Surreal. Essa foi a palavra que me veio à cabeça quando cheguei à Vila dos Atletas, na cidade de Hopkinton, local de largada da Maratona de Boston. Depois ouviria a mesma palavra de muitos outros corredores. Porque a cena era mesmo surreal. Chovia muito. E estava muito frio. Temperatura de zero grau, sensação térmica de -6. Ventos, dizem, de 35km/h. Rajadas de vento e chuva vindos de todos os lados. Uma nevezinha no chão. O que seria um gramado, era só lama. Imagina um cenário de guerra… Era mais ou menos isso. Foi o pior clima da região nos últimos 40 anos. Bem na minha vez! Mas quem disse que seria fácil?
Antes de sair do hotel, encapei meu pé com filme plástico (foto abaixo); usei sacolas plásticas para proteger o tênis; usei blusa térmica, camiseta, corta-vento, capa plástica transparente, viseira, luva quente e luva de látex por cima (e por dentro das luvas hand warmers)… Mas por mais que eu tivesse seguido as recomendações de tentar me manter seca o máximo possível até a largada, não deu para escapar de me molhar. O ônibus levou quase uma hora para nos levar de Boston até a Hopkinton. Foi devagar pela estrada por causa da chuva. Chegando lá, fui direto para a fila (enorme) do banheiro químico. Fiquei esperando na chuva, em meio ao barro. Demorava porque era difícil por e tirar a roupa já molhada. E imagina ali, naquele cubículo cheiroso…
Juro que enquanto esperava minha vez na fila cogitei em não largar. Me deu pânico. Eu estava achando desumano aquela chuva, aquele frio, a corrida naquelas condições… Não foi na base da determinação, não. Foi mais ou menos na base da ameaça: “Yara, você veio aqui para correr, para buscar sua medalha do Unicórnio; você está em Boston; vai lá e corre”.
Assim que me ajeitei, acelerei para ir para minha largada (Wave 3, onda 5). Eu já estava atrasada. Arranquei as sacolas plásticas do pé, com medo de escorregar, e tirei a calça que vestia por cima do legging para me proteger do frio. Apertei o passo rumo à largada. Só parei e pedi para o fotógrafo oficial um registro do visual incrível que eu estava naquele dia! #sqn
Não dava pra pensar em tirar foto com celular. Primeiro porque iria molhar muito o aparelho e segundo porque era difícil manusear qualquer coisa com as luvas nas mãos. Coloquei os carboidratos em bolsos laterais, mais ou menos fáceis de pegar.
Da entrada da Vila até a largada propriamente dita, a gente anda um bocado. E tome chuva! E quase não percebi a largada. Não tinha nada grandioso, não enxerguei nem pórtico (se tinha, não vi). Quando olhei para o chão e vi aqueles tapetes de cronometragem foi que me toquei – era ali que começava! Com as luvas, não consegui dar o start no meu relógio e pedi para um voluntário 🙂
Enfim, começou a corrida, em descida. E por mais que eu tivesse todo o plano na cabeça – segurar um pouco no início para aguentar as subidas da segunda metade -, não dava para resistir. Devo ter feito os primeiros quilômetros entre 5’10” e 5’30”.
TORCIDA O TEMPO TODO
Cheguei a pensar o que eu tinha feito pra Deus para enfrentar uma prova tão dura – eu e mais quase 30 mil corredores… Acho que tinha muito pecador ali, rsrs. Se era para a gente aprender alguma coisa, certamente aprendemos. Resiliência é a palavra.
A Maratona de Boston não é uma prova para você ficar pensando na vida. O público – mesmo naquelas condições climáticas surreais – não deixa. É gritaria, sininho tocando, música alta o tempo todo. Pessoas de todas as idades – do bebê no carrinho ao velhinho de bengala – participam com orgulho. E gritam aquelas palavras de motivação quando passa por sua cabeça desistir. Mas entre tantas expressões que te empurram para frente, notei também alguns olhinhos infantis incrédulos, como que perguntando: “por que vocês estão fazendo isso?” Tinha um garotinho até de máscara de mergulho. Juro!
Até o quilômetro 15, eu consegui estar absolutamente dentro do planejamento do meu treinador Marcos Paulo Reis, na MPR. Passei nos 10K com 58m25s e nos 15K com 1h27m49s. E foi só no quilômetro 15 que descartei a capa de chuva transparente – a ideia inicial era ter ficado com ela até o quilômetro 4, para aquecer.
Sei que depois desse ponto a corrida foi ficando pesada para mim. Roupa molhada, cabeça baixa por causa da chuva, o barulho já irritando um pouco… Eu estava completamente tensa! Cheguei a caminhar em uma das subidinhas (o percurso é um eterno sobe e desce) para tomar um gel. Mas percebi que não seria bom. Era melhor diminuir e continuar do que dar essas paradinhas. Se o corpo esfriasse, voltar a correr seria muito difícil.
A ideia de parar ou pedir ajuda na tenda médica às vezes passava pela cabeça… Na meia maratona, apesar de já estar 2 minutos e meio acima do planejado (passei com 2h04m45s), dei uma animada com as meninas do Wellesley College of Liberal Art. É tradição: elas ficam penduradas nas grades, gritando alucinadamente, segurando cartazes e pedindo beijo aos corredores.
Atletas cegos e seus guias – vi vários pelo caminho – me faziam refletir sobre a tal da resiliência. O pensamento vinha e ia embora rápido… Lembra que eu falei que o barulho da torcida não deixa você ficar divagando sobre a vida?
POR QUE TUDO ISSO?
Da metade para frente, desencanei de tempo – se eu chegasse já seria um milagre. Sabia que tinham algumas subidas mais acentuadas pela frente (nos quilômetros 27 e 28) e a famosa Heartbrake Hill (no quilômetro 32). Sofri bem nas elevações do 27 e 28. Ameacei chorar no 30 (já com 3h01m07s de prova; 5 minutos a mais do que o previsto). Queria pegar o Advil que tinha levado para tomar e postergar a dor e, por causa das luvas, nem consegui abrir o bolso de trás da calça… Dizia para mim mesma que aquilo era desumano e que eu iria encontrar o Marcos Paulo no quilômetro 35 para parar. Eu não sentia aquela dor insana (apenas um pouco mais o quadríceps sendo exigido), mas o frio, a chuva, a roupa molhada, a tensão, estavam abalando o psicológico.
Eu também lembrava da minha família e dos amigos – reais e virtuais – que estavam me acompanhando pelo aplicativo e ficava pensando o que eles pensariam se eu parasse. Uma pressãozinha interna, sabe?
Sei que atravessei o quilômetro 32 e perguntei: cadê a Heartbreak? Acho que já estava tão baratinada com o frio, que só percebi que tinha passado porque vi uma pessoa segurando um cartaz ao final da subida, avisando. E a dor que eu temia sentir no tendão do meu calcanhar direito, nem deu as caras. Talvez a “crioterapia” em modo contínuo estivesse cuidando disso rsrs.
A EXPECTATIVA DO QUILÔMETRO 35
Passei a correr na expectativa do quilômetro 35, para encontrar o Marcos Paulo e tomar um Redbull que ele tinha levado para os alunos. Dali para frente seriam 7 quilômetros de descida.
Na placa do 35, não vi ninguém. Sou míope e, com chuva, enxergar de longe era impossível. E agora? Para completar, não tinha tomado o quarto gel porque não consegui tirar do bolso. Desejava o energético mais que tudo. E estava pronta dizer para o MP que queria parar. Talvez, apenas talvez, eu fosse me arrastando até o final.
Um pouco mais adiante, ouço o grito: “Yaraaaaaaaa! Pega o Redbull!” O alucinado do Marcos Paulo sai debaixo de um toldo de um posto de gasolina, onde estava abrigado, e me entrega a latinha. Perguntou se eu estava bem. Eu disse que não aguentava mais. Mas acho que ele não ouviu – ou sabia que eu podia continuar… E me mandou seguir, falou que faltava pouco.
Sim. Mais 7 quilômetros e estaria tudo acabado. Só que para quem estava naquela batalha insana, era uma eternidade. Foi o grito e a atenção do Marcos Paulo que serviram de estimulante. Sabe aqueles 30% de reserva que a gente tem quando acha que não aguenta mais? Pois acionei essa reserva. Passei a correr muito mais rápido – tudo bem que a descida ajudava. Olhei no relógio e vi marcando o ritmo de 5’10”. A partir desse trecho a gente também entra na cidade de Boston e a torcida é muito grande. Os caras vibram por você de uma maneira louca. Eu comecei a sorrir e a agradecer com um gesto de mãos unidas. Foi muito mágico. Ainda parei para tomar um chocolate quente que me ofereceram. Demais!
O sofrimento tinha ficado para trás. A medida que a linha de chegada se aproximava, eu já começava a sentir saudades de Boston. Faltando um quilômetro para o final, resolvi “me arrumar para as fotos” rsrs. Tirei a viseira e o buff que cobria minha cabeça. Sacudi os cabelos molhados. Levantei as mãos para o alto. Fechei os olhos. Agradeci por tudo que passei até chegar ali. Agradeci à vida, ao Universo, a Deus.
Vieram mais algumas curvas e ruas e de repente, já na Boylston Street, vi aquele pórtico que tanto sonhei cruzar. Gritei. Chorei. Fiquei gigante. Forte. Renasci em 4h16m49s. Sei que tinha muita gente me acompanhando pelo aplicativo. Mas não tinha ninguém a não ser eu mesma me encontrando na linha final. Boston entrou para minha história. E eu entrei para a história de Boston!
Tenho muito mais para contar. E vou fazendo isso aos poucos. A Maratona de Boston é única. É mais que uma corrida. É mais que um índice. É mais que orgulho de estar ali. Se em condições normais ela já é transformadora, imagine como foi enfrentá-la nessa situação. Foi a corrida mais difícil da minha vida. E foi a corrida da minha vida!
AGRADECIMENTOS
Quero voltar a falar de cada um que me ajudou a chegar até Boston e a cruzar aquele pórtico de chegada. Mas não posso deixar de agradecer aqui, de todo coração, com todo meu carinho e respeito, ao Marcos Paulo Reis, meu treinador há 12 anos; ao Fernando Pripas, da Zuz, meu fisioterapeuta do Pilates que mudou meu corpo; ao Thiago Pitta Penna, meu amigo e treinador de levantamento de peso do Team Penna, que me deixou ainda mais forte e confiante; a Bet Olival, da Kamel Turismo pela parceria que tornou essa viagem possível. Obrigada também à galera da Smartfit, da Mizuno, da Polar. Valeu família e amigos que estiveram perto de mim nesse ciclo, que me aguentaram falando dos meus sonhos e do quanto eu estava feliz com tudo isso. Vocês sabem quem são e o quanto meus olhos brilham ao me referir a vocês. Love you!
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